segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Eu e tu

Tu sorri quando eu chego. Eu falo, muito rápido, as novidades, as grosserias, os gracejos pra te fazer rir. Tu me despe da pose e me abraça, se esconde em mim de toda a ruindade do mundo, e eu em ti. Parece que finalmente podemos respirar, então respiramos. Por mais que Eu e Tu sejamos entidades físicas e metafísicas separadas, independentes, com gostos em separado e em comum e apreciemos isso acima de todas as coisas, existe então aquele momento sempre breve que, escondidos do resto do mundo, a gente vira aquele (quase) patético pronome pessoal na segunda pessoa do plural, que desfaz o nosso orgulho em carinho. Criamos esse cotidiano onde tu desfaz a minha ordem (e sim, falo das lixeiras e das cobertas). Eu me chego em ti, atrás do calor que eu desaprendi a dormir sem, procurando em ti os lugares (novos e bem decorados) onde eu gosto mais do teu cheiro. 
Até acordar e começar tudo de novo.

sábado, 15 de setembro de 2012

A Lu que Dança

Existem diferenças fundamentais entre a Lu e a Lu que Dança:

A Lu nunca gostou do próprio corpo, se acha feia e gorda, acha as pernas grossas demais, acha o rosto estranho demais, o cabelo não combina com nada. A Lu que Dança tem umas pernas que a Lu inveja. Ela tem um jeito de fazer qualquer coisa que às vezes parece que flutua. A Lu que Dança tem uma cintura bem bonita e um corpo próprio pra todos os balés que ela se bailarina, e os olhos que transmitem sentimentos e a alegria por estar fazendo o que gosta.
A Lu não se acha talentosa, a Lu se diminui muito. A Lu que Dança, cada vez mais, ouve e diz pra si mesma que nasceu pr'aquilo.
A Lu desiste fácil. A Lu que Dança sabe que ela é capaz de qualquer coisa, com tempo suficiente pra ela treinar e se esforçar e saber o que faz.
A Lu muitas vezes se acha burra. A Lu que Dança sabe que basta ela saber do que se trata algo e entender o processo de qualquer coisa que muito em breve ela saberá fazer por si só.
A Lu que Dança vê as coisas mais impossíveis, as mais mirabolantes, as bailarinas mais graduadas e pensa "Hahá, eu farei isso um dia e com a minha personalidade terá um tempero bem bacana". A Lu vê coisas impossíveis e pensa que terá um destino medíocre perante tudo aquilo.
A Lu que Dança há muito aprendeu que tempo e esforço são a chave. A Lu não se esforça muito.
Sem falar que a Lu que Dança é grande amiga da sua feminilidade, pesquisa as maquiagens que vai usar, vê os tecidos e figurinos favoritos, pensa em quase tudo pra chamar atenção no palco, é um pavão. A Lu tem grandes problemas com sua feminilidade, viveu a vida toda pensando que era sinal de fraqueza ser feminina.

A Lu ainda não entendeu que ela e a Lu que Dança são a mesma pessoa.
A Lu que Dança já sabe disso faz tempo, tem a maior fé na Lu, acha que ela é o máximo, e que não teria tanto sentimento nos seus passos se a Lu não tivesse passado por tudo que a faz sofrer assim.


- e que conste nos autos que a Dança transforma -

sábado, 9 de junho de 2012

O Jardim da Árvore Solitária.

Em uma cidade qualquer, não muito grande ou importante para ser lembrada, há um parque no qual encontra-se um jardim com uma única árvore solitária. Não é muito alta ou frondosa, mas com altura suficiente para se subir e com uma copa vasta o suficiente para oferecer uma sombra agradável. Somente o encontram aqueles que caminham distraídos por tempo suficiente para serem guiados pelos próprios pés, então, naturalmente, são crianças em sua maioria. Muitas delas contam animadas umas as outras e a seus pais como ouviam aquela árvore solitária do jardim sussurrar, outras diziam que ela parecia se mexer quando não há vento, mas quando olham de perto está tão estática quanto uma pintura. Obviamente, os pais dessas crianças faziam o que qualquer ser humano racional faria e gastavam enormes quantias de dinheiro com tratamentos psiquiátricos para que nunca essas crianças ousassem a sair dos moldes da realidade novamente. Mas haviam as crianças sensatas que sabiam guardar segredos assim daqueles que não entenderiam, ainda mais segredos tão perturbadores quanto os sussurrados por aquela árvore.
 Quando as crianças se aventuravam a encostar suas orelhas na árvore por tempo suficiente ouviam a seguinte história:
O filho de uma poderosa bruxa havia se apaixonado pela princesa do reino. Ela estava presa em uma torre guardada por um dragão, e num surto de paixão e coragem o jovem se lançou em uma busca interminável para salvar seu único e verdadeiro amor. Ao encontrar a torre, o jovem passa com grande dificuldade pelo dragão e chega até o quarto onde a princesa está guardada, bastante ferido e com a terrível besta se aproximando a largos passos. Enquanto os urros da fera fazem vibrar as paredes da torre, o jovem pede para que a princesa venha com ele para a liberdade.
 Nessa parte, a árvore ri.
A princesa chega sozinha ao vilarejo mais próximo, é reconhecida e mandada de volta ao seu castelo. Fazem uma festa para comemorar seu retorno, e em meio aos risos e música, a princesa se encontra com uma senhora de olhos escuros como a noite. Ela a oferece uma bebida que promete fazer grandes revelações e trazer sabedoria sem fim, como presente pela bênção se deu retorno. A princesa aceita de bom grado, e vira a bebida alí, de uma só vez, então, para o espanto de todos, uma tempestade se forma, o vento cala as vozes e a  música, e somente a voz da senhora dos olhos da noite se faz ouvir.
"O que aconteceu com ele? O jovem que foi te salvar?"
A princesa contou, sem melindres e sem controle sobre suas palavras, como roubou a espada do jovem e sozinha cortou seu caminho para a liberdade, enquanto o dragão se ocupava com sua isca, agora indefesa. Contou como ouviu o jovem gritar por ela, como chorou de medo, e como chamou por sua mãe, bem no final. Ela conta que achou patético e fraco.
A senhora chora de raiva. Seu filho havia se perdido no egoísmo de seu único e verdadeiro amor. Então, como vingança por tamanha desfeita, a senhora transforma a princesa em uma árvore, e a condena viver sozinha e calada por eras até que suas reflexões se transformassem em culpa e a corroessem como cupins.
Nessa parte, a árvore sussurra que ainda gosta de matar jovens meninos por diversão e que os cupins ainda não haviam chegado. E derruba as crianças no chão. Elas correm assustadas para seus pais e suas casas.
E a arvore ri.

sábado, 26 de maio de 2012

As mãos que eu não queria soltar

São essas que, a cada afinidade, seguravam as minhas.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Receita para correr risco.

Você vai precisar de:

- Um dia. Ou noite. À gosto, mas precisa ser perfeito;
- Acaso conspirando para a realização de seus anseios, uma pitada para dar um susto, pois a certeza, nesse caso, não é o que queremos;
- Alguma sinestesia forte (por exemplo: imagens que lembram gostos, gostos que lembram músicas, músicas que lembram cheiros, cheiros que lembram abraços, abraços que dão histórias, histórias que tem imagens), a de sua preferência;
- Sinceridade absoluta, 2 xícaras;
- Segredos trocados em meio litro de lágrimas, visíveis ou não;

Junte todos, sem peneirar ou escolher, em uma só panela. 
Leve ao fogo baixo por tempo indeterminado (mas que certamente parece maior do que deveria), e ao levantar fervura, desligue com pressa. 
Sirva com seu cheiro, meus olhos e atração metafísica.
Coma sem saber se está quente. A surpresa aqui é fundamental.


segunda-feira, 16 de abril de 2012

Mil e Um aniversários. Parte I

Era uma vez uma menina que, a cada ano, fazia Mil e Um aniversários.
Na verdade era um só, mas tantas pessoas ela estimava que uma festa apenas não comportaria as pessoas que seu coração abrigava, então ela fazia Mil e Uma festas de aniversário.
Essas festas costumavam a misturar muitos dos seus amigos, conforme a afinidade entre eles. Ao preparar a lista de convidados de cada festa usava medidas, balanças, cálculos e intuições, se sentindo assim meio bruxa, meio cupido, meio um dedo do acaso. Ela gostava muito quando seus amigos faziam novas amizades, e pra ela era muito melhor do que qualquer presente saber que as pessoas estimadas tinham companhias que ela sabia que eram confiáveis.
Os anos variavam de tema (uma vez eram festas em casa e pic-nics, outra eram festas dançantes, ainda pequenas reuniões em restaurantes), variavam de companhias que a vida permitia que estivessem alí naquele momento, variava o cabelo... Mas o amor permanecia. E era com amor que ela fazia questão de agradecer a cada um por estar alí, em mais um outono de vida, e fazer daquela uma ocasião especial.

Mas em uma ocasião em que seus sentimentos eram ventania e tempestade dentro de sua cabeça, o mar de pensamentos batia nos olhos e a fazia chorar sempre que uma reviravolta violenta demais acontecia. E tudo que ela queria para seu aniversário era paz e silêncio. Tentou fazer uma pequena festa intimista, ao invés de Mil e Uma festas, mas não conseguiu. Havia, como sempre, muitos convidados.
Tentou desconvidar, tentou selecionar, mas se sentiu ingrata e injusta.
Tentou parar de se culpar ou se sentir instável e de sentimentos fáceis. Tentou até se sentir menos tola, mas não conseguiu.
Acreditou por um momento que seu amor era fácil, que não tinha filtros e se descuidava.
E ficou triste, pois nem sempre ser uma pessoa plural e de muitos amores para sustentar era fácil.


(continua quando a menina souber um motivo pra não ficar mais triste...)




terça-feira, 10 de abril de 2012

A calmaria depois da tempestade

Serve pra gente se dar conta de como podemos ser bem panacas e fazer um grande caso de algo bem simples.

domingo, 1 de abril de 2012

O pão nosso de cada dia.

Pão, como se espera, é uma metáfora pra algo solido mas não firme, é algo que eu posso moldar, amassar, rechear, torrar e por fim comer. E é uma parada, essa, que faz migalha.
E meu Deus, haja migalha.
As migalhas de um pão já feito. Foi preparado pra outra pessoa, que solta os farelos no chão. Eu, cega de fome e desespero me atiro freneticamente (pois esse é o unico jeito que sei) e devoro as migalhas todas, sem ver exatamente o que as provoca.
Mas a fome bate de novo, os restos minguam, o vazio volta. Eu olho pra cima e vejo nada além do pão bem amassado nas mãos de outra pessoa, que não sente fome.
"É maldade" penso.
"Mas alí tem algo que você não pode comer além do pão que produz o farelo, e te seria indigesto" dizem. "Então não é maldade te privar. Pare de sentir fome."

Como parar de sentir fome?
E se não houver mais nada para comer?
Será aquilo tudo tão indigesto assim?

E será que tu sabes quantos desses aqui são pra ti?